segunda-feira, janeiro 28

De ouvidos em bico

"Estava-se mesmo a ver, o que é que tu esperavas?"
A culpa era dela, evidentemente, que não perdia a mania de, por tudo e por nada, ligar para a amiga a chorar-se. Qualquer ligeiro atraso, qualquer gesto menos habitual, tudo ela transformava numa tragédia grega. Insegurança, garantia a amiga. E quem não seria insegura ao lado de um homem com dez anos a menos e lindo de morrer?
Mas desta vez a desculpa tinha sido tao esfarrapada que a mentira era mais evidente. Desta vez até a amiga tinha concordado: "Uma reunião com japoneses? Pelo amor de Deus, não podia ter escolhido gente mais normal, com uma língua que se percebesse?", disse ela,querendo saber que negócios tinha ele com japoneses e se ela alguma vez tinha ouvido falar nisso. Claro que não, por isso se via à légua que era aldrabice, a esta hora estava ele certamente com outra, bem mais nova, a rirem-se dela que tinha engolido aquela dos japoneses sem fazer nehuma pergunta. E agora está ali, no café onde normalmente se encontram ao fim da tarde, só que desta vez ela está sozinha, e vai continuar sozinha porque ele deu aquela desculpa para não aparecer, "Nem queiras saber como estou chateado, mas o patrão não tinha mais ninguém para lá mandar aturar os gajos". "Claro, deve ser porque falas muito bem a língua", disse ela, mas ele não ouviu e mudou de assunto e prometeu que no dia seguinte compensava.
Bebe o café sem gosto, apenas porque não lhe apetece ir para casa, e àquela hora está sempre ali, uma pessoa não perde os hábitos facilmente.
A seu lado uma rapariga desdobra-se em estrondosas gargalhadas com o telemóvel colado à orelha, mas por que será que as pessoas gritam tanto ao telemóvel, que necessidade há que toda a gente conheça a vida de toda a gente, pensa ela,esforçando-se por não ouvir. Ela quer é pensar nas suas desgraças, a felicidade dos outros incomoda-a, a rapariga está feliz,ri muito entre cada frase, é nova e bonita, e deve ter um namorado que gosta dela "Ó pá, essa foi de génio!", continua ela a gritar para o telemóvel e a rir muito. "Como é que te foste lembrar de japoneses?", e de repente ela sente as mãos a tremer, e entorna o resto do café, e tem muita vontade de chorar, mas contém-se e consegue até olhar para a rapariga, que está a falar para o namorado que lhe roubou, os dois a fazerem troça dela, que caiu nessa história sem pés nem cabeça da reunião com os japoneses. Ela quer pensar noutra coisa mas não consegue, nem consegue deixar de olhar para a rapariga, "Então foi por esta que ele me trocou...",pensa, "È com ela que se vai encontrar não tarda nada",e começa a preparar um longo discurso de adeus para o dia seguinte, com palavras que o façam sentir muito mal e cheio de remorsos. A rapariga continua a rir, "Japoneses!" Ó pá, tu és mesmo um génio", e ela bebe-lhe as palavras, parece hipnotizada, tudo à sua volta desapareceu, o café, as mesas,o balcão - e só à terceira vez é que de repente ouve a voz dele, "Caramba, fiz um esforço danado para acabar a reunião a tempo, voei do escritório até para aqui para te fazer esta surpresa e tu nem olhas para mim, nem um beijo de boas tardes nem nada?"
Ela olha para ele, ainda não acredita que é mesmo ele que ali está, sorrindo e deitando os bofes pela boca, e diz-lhe que está muito contente, que foi uma surpresa magnífica, e dá-lhe um beijo- enquanto ao lado a rapariga continua, "Japoneses! Tu és um génio!" "Os japoneses estão com muita saída", murmura ela, "O quê?",pergunta ele, mas ela diz que não é nada, uma tolice que lhe saiu pela boca, o melhor é irem jantar que se faz tarde, e que tal um sushi caprichado? »
(Alice Vieira)
Tal, como as nossas mães nos ensinaram, é muito feio escutar conversas alheias...

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